O presidente do Chile, Gabriel Boric, no Palácio do Eliseu, em Paris, durante sua turnê europeia, sexta-feira, 21 de julho de 2023. REUTERS - GONZALO FUENTES O presidente do Chile, Gabriel Boric, no Palácio do Eliseu, em Paris, durante sua turnê europeia, sexta-feira, 21 de julho de 2023. REUTERS - GONZALO FUENTES

O presidente chileno, Gabriel Boric, tornou-se o aliado mais incômodo da esquerda latino-americana. As posturas de Boric em temas como Venezuela e Ucrânia representam um “fogo amigo” para a estratégia do presidente Lula de liderar a região. A posição de Lula, por sua vez, dificulta a modernização da esquerda regional, segundo alguns especialistas. Não é a primeira vez que um presidente chileno questiona abertamente um presidente brasileiro.

Nas últimas reuniões de cúpula, a postura do presidente do Chile, Gabriel Boric, desentoou o coro da esquerda regional, chocando-se de frente com a do aliado presidente Lula nos dois assuntos principais que hoje dividem a América Latina e o mundo: Venezuela e Ucrânia, respectivamente.

Nas duas questões, Gabriel Boric desafia a liderança de Lula, cuja posição parece inclinar-se por defender regimes como o venezuelano. “Sem dúvida, a postura de Boric questiona a liderança de Lula”, afirma à RFI o cientista político e sociólogo chileno, Patricio Navia. “O presidente brasileiro se vende ao mundo como o líder dos países da América Latina, representante de um país que tem um papel a jogar no mundo. Mas eis que surge Boric, de um país pequeno, mas que questiona a posição do Brasil, indicando que Lula não é o líder e que não pode falar pela América Latina. Boric diz claramente que a visão de Lula está errada”, interpreta Navia, da chilena Universidade de Diego Portales e da norte-americana New York University.

“O Brasil tem outros aliados estratégicos econômicos que devem ser postos sobre a mesa como a sua aliança com Rússia, Índia, China e África do Sul, através dos Brics. Não é que Lula relativize a importância da democracia, mas se seguir a linha que Boric pretende, o Brasil arrisca a relação com os seus aliados”, explica a cientista política chilena Javiera Arce, uma estudiosa das relações internacionais brasileiras.

Para Patricio Navia, a visão do presidente do Chile aproxima-se da esquerda de Portugal e Espanha em oposição às « enferrujadas narrativas » dos demais líderes da esquerda latino-americana, além de Lula: Alberto Fernández (Argentina), Gustavo Petro (Colômbia), Nicolás Maduro (Venezuela), Miguel Díaz-Canel (Cuba), Daniel Ortega (Nicarágua) e Andrés Manuel López Obrador, todos aliados entre si.

“Mais do que o Chile desentoar na América Latina, é a América Latina que desentoa das posições da esquerda moderna no mundo. Boric se sente mais integrante da esquerda europeia do que da esquerda latino-americana. Isso beneficia Boric na sua relação com o mundo, mais do que Lula”, compara Navia.

Javiera Arce, por sua vez, destaca o estilo de liderança de Lula, fora do convencional. “Lula tem uma liderança muito diferente que parte de outra perspectiva. Acredito que haja uma estratégia por trás que se baseia em ações conciliadoras, descartando as rupturistas. Lula procura cuidar das relações a partir da conciliação. Para isso, existem elementos que entrecruzam”, pondera Arce.

Fogo amigo?

A mais recente contradição da esquerda latino-americana aconteceu na reunião da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) e da União Europeia (UE). O pedido de Gabriel Boric por uma postura mais enfática da América Latina contra a guerra na Ucrânia, em linha com a posição europeia de uma condenação política contra Vladimir Putin foi vetado. Nem mesmo foram aceitas menções à Rússia.

“Hoje é a Ucrânia e amanhã pode ser qualquer um de nós. Não importa se gostamos ou não do presidente de outro país. O importante é o respeito ao direito internacional, que foi claramente violado por uma parte que é a invasora, a Rússia”, apontou Boric.

“É preciso observar que mesmo dentro da coalizão de governo, a Frente Ampla, Boric se coloca contra o Partido Comunista chileno (favorável à Venezuela e à Rússia). Esse é o fogo amigo interno. Essa posição de Boric no plano doméstico também o beneficia porque a população chilena não gosta dessa esquerda regional. Além disso, ao assumir essa postura, Boric também contém os adversários políticos da direita chilena. É o fogo inimigo mesmo”, indica Javiera Arce.

O documento final da reunião CELAC-UE apenas manifestou uma “profunda preocupação” com o conflito. A posição de Gabriel Boric foi criticada pelo presidente Lula, quem apontou para a pouca experiência do chileno, devido à sua idade.

Em Bruxelas, Lula classificou Boric de “apressado”, justificando a postura do chileno devido à sua “juventude” que provoca “falta de costume” com essas reuniões. Com 37 anos, Boric é o presidente mais jovem em exercício. “Quando Lula diz que Boric tem de aprender, tomara que Boric não aprenda o que Lula tem defendido. Com essas declarações, Lula tenta enfraquecer a postura de Boric, mas termina fortalecendo-o. Boric defende a democracia e os direitos humanos que Lula silencia”, avalia Navia.

“Acredito que a postura de Lula seja uma estratégia para alcançar a paz na Ucrânia a partir de uma perspectiva da Rússia. Quando Lula diz que Boric é ansioso e que carece de prudência, é porque talvez não compreenda o delicado contexto no qual Lula está”, relativiza Arce.

“Lula acredita que possa ter um papel importante no cenário mundial, mas o resto do mundo não pensa que o Brasil possa ter esse papel. Há uma dissociação entre a forma como o Brasil entende o seu lugar no mundo e a forma como o mundo entende o lugar do Brasil”, rebate Patricio Navia.

Esquerda desafinada

Desta vez, a discordância entre os líderes de esquerda Lula e Boric foi sobre a Ucrânia, uma questão sensível para o mundo. Porém, em 30 de maio passado, a discordância entre os dois foi sobre a Venezuela.

Em Brasília, Lula defendeu enfaticamente o venezuelano Nicolás Maduro, minimizando as críticas à Venezuela a uma questão de “narrativa de antidemocracia e de autoritarismo”. Boric discordou publicamente de Lula, afirmando que as violações de direitos humanos na Venezuela são uma “realidade” e que esse princípio não pode ser “colocado debaixo do tapete” nem se pode fazer “vista grossa”.

Ucrânia e Venezuela são os dois principais assuntos que, politicamente, impedem uma articulação na América do Sul e separam a região das principais potências ocidentais.

“Acredito que Lula não defenda as autocracias de Nicarágua e Venezuela. Acredito que seja uma estratégia para abordar os problemas em conjunto num nível regional para conseguir certos níveis de acordo e de negociação para restabelecer a democracia. O que Lula procura é uma estratégia para sair da crise. É uma concepção diferente da de Boric e, por isso, se chocam”, considera Arce.

Estratégia de Lula seria limitada

A diferenciação de Gabriel Boric em relação a Lula racha a narrativa da esquerda latino-americana, neutra ou favorável à Rússia, mas também dificulta a estratégia de Lula de liderar a região como plataforma de inserção internacional do Brasil como ator global, segundo especialistas. “Sem dúvida prejudica muito a estratégia de Lula porque traça uma linha divisória. Essa discrepância é saudável para a democracia na América Latina, mas afeta os planos de Lula”, acredita Patricio Navia.

Até a posse de Lula, pensava-se que Brasil, Colômbia e Chile formariam um tripé que articulasse os planos de uma esquerda regional renovada e moderna. “Lula torna mais difícil que apareça uma esquerda moderna, comprometida com a defesa dos direitos humanos e com a democracia. O líder do maior país da América Latina não tem uma posição comprometida com esses princípios. Lula não será visto pelo ocidente como um líder internacional porque tem essas posições, impróprias para uma esquerda moderna”, prevê Navia.

Algo semelhante tinha acontecido com Bolsonaro, cuja postura impedia que a então direita regional com Mauricio Macri na Argentina, com Sebastián Piñera no Chile e com Iván Duque na Colômbia se modernizasse e se articulasse em torno de uma liderança brasileira.

Bolsonaro X Piñera

Não é a primeira vez que um presidente chileno discorda de um brasileiro em direitos humanos e democracia, mesmo quando têm a mesma ideologia. No passado recente, o presidente de direita, Sebastián Piñera, fazia questão de sublinhar que apoiava a política econômica de Jair Bolsonaro, mas discordava da sua visão em matéria de direitos humanos. Nesse caso, o ex-presidente brasileiro destoava da direita regional.

Em março de 2019, Jair Bolsonaro elogiou o ex-ditador chileno Augusto Pinochet (1973-1990). O próprio presidente Sebastián Piñera, o principal aliado de Bolsonaro na América Latina, classificou como “tremendamente infelizes” as declarações de Bolsonaro em matéria de direitos humanos.

Em setembro do mesmo ano, Bolsonaro atacou a antecessora de Piñera, a ex-presidente de esquerda Michelle Bachelet, então Alta Comissária para Direitos Humanos da ONU. Bolsonaro criticara o pai de Michelle, Alberto Bachelet, ex-brigadeiro-general da Força Aérea, opositor ao golpe militar durante o bombardeio comandado por Pinochet ao Palácio Moneda, sede do governo chileno.

Piñera defendeu a opositora Bachelet e diferenciou-se do aliado Bolsonaro: “É de público conhecimento o meu permanente compromisso com a democracia, com a liberdade e com o respeito pelos direitos humanos. Em consequência, não compartilho em absoluto a alusão feita pelo presidente Bolsonaro”.

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